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A Humanidade através do espelho

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 Imagina que te retiram a possibilidade de te veres ao espelho. Todos os dias deves sair de casa sem te olhar, sem ver se o cabelo está arranjado, se a camisola combina com as calças, se as olheiras estão marcadas ou não.

A Humanidade está, como um todo, nessa posição. Há uma discussão que precisa de ter ao espelho consigo mesma, mas não está preparada para ela. Talvez o espelho até exista, mas passa despercebido.

Nas palavras de José Saramago, só nos conseguimos ver quando saímos de nós. Acho que a solução passará por aí. Mas, antes de mais, vamos olhar o problema.

Sendo a Humanidade composta por todos os seres-humanos, este problema de identidade começa na perda de ligação ao outro que cada um de nós está a ter.

Vivemos um período de excesso de individualismo, seja pelas bolhas que as redes sociais criam, seja pelo excesso de informação, que não permite que esta seja filtrada da melhor forma.

Com tanto ruído, acabamos por enveredar pelo caminho mais fácil ou confortável, activando todos os mecanismos de sobrevivência.

Cada pessoa está a isolar-se na sua própria bolha, com as suas ideias, os seus conceitos, aceitando apenas quem deles comunga. Isto provoca uma dificuldade enorme em lidar com a diferença, em lidar com opiniões contrárias.

Bem sei que todas estas ideias soam familiares, porque são repetidas vezes sem conta todos os dias, por muitos de nós. Não podemos ser acusados de falta de consciência do problema. Talvez não saibamos, de facto, como resolver esse problema.

Tenho uma sugestão.

Precisamos de parar. De desacelerar o tempo imposto por um sistema que nos exige constante ligação e produtividade.

Viver mais devagar e, assim, ouvir. Mais do que ouvir, diria escutar. Precisamos de deixar que as palavras nos entrem e nos provoquem algo. Pensamento. A magia das palavras é essa: a capacidade de criar ruptura nos nossos próprios pensamentos, assim que lhes abrimos as portas da nossa própria percepção.

E é esta atitude diferente, disruptiva, que permitirá corrigirmos outro efeito que nos impede de olhar o espelho: a incapacidade de aceitar a mudança de opinião como força e não a ver como fraqueza.

A mudança faz parte do progresso. Só evolui quem muda. Quem se permite a evoluir e a mudar.

Olhamos para quem muda de opinião como fraco. Vemos a mudança de direcção de um pensamento como um atestado de inutilidade ao pensamento anterior.

E isto provoca uma defesa excessivamente séria e fatalista das nossas crenças, bem como uma intolerância a quem ousa beliscar essas crenças.

Encaramos as ideias que defendemos como os pilares estruturais da nossa existência. Definimo-nos pelo conteúdos das nossas premissas e não pela nossa capacidade de as criar. Temos de mudar o foco dessa identificação.

Dizermos que somos aquilo em que acreditamos e fecharmo-nos a poder acreditar noutras coisas, a poder mudar de opinião, de perspectiva, é dizermos a nós mesmos que não podemos mudar. É fechar as portas ao crescimento e à evolução.

Temos que aceitar a noção de mudança. Diria mesmo procurar activamente essa mudança, procurando desafiar as nossas crenças e opiniões a cada momento. Porque a situação será sempre vantajosa: ou solidificamos aquilo em que acreditamos, ou passamos a ter uma ideia, de momento, mais acertada.

É este o caminho da mudança. É este o percurso da Humanidade para se curar da doença do individualismo excessivo. Para que possa voltar a olhar-se ao espelho e a evoluir. A saber combinar a camisola com as calças e a corrigir as olheiras. Só saindo de si poderá olhar para si.


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