Quantcast
Channel: cultura – Aventar
Viewing all articles
Browse latest Browse all 42

Morto.

$
0
0

Fotografia: José Coelho/Agência Lusa

O presidente da Câmara Municipal do Porto (CMP) nem sempre foi Presidente da Câmara. Isto é, não nasceu para ser presidente, o que contraria a faixa mais tocada no cd dos neo-liberais: a do mérito. Na verdade, ainda ninguém percebeu bem qual o principal talento de Rui Moreira: estudou nos melhores colégios privados do Porto, estudou em Londres na Universidade de Greenwich e, sabe-se, depois disso nunca teve de enviar um CV na vida.

Rui Moreira foi, durante anos, presidente da Associação Comercial do Porto (ACP). Antes, foi um reputado empresário do sector imobiliário. O que, tendo em conta essa reputação, tornava lógica a sua presidência na ACP (e haveria de tornar lógico, mais à frente, o seu reinado enquanto presidente da Câmara Municipal, mas já lá vamos). Fora isto, poucos o conheciam.

Mas haveriam de vir a conhecer. Este filho e neto de Condes e Viscondes, haveria de se notabilizar por conta do comentário desportivo (olha quem!). Durante anos, foi o comentador afecto ao FC Porto no programa da RTP3 “Trio d’Ataque”, onde fazia a defesa acérrima daqueles que, há décadas, andam a usurpar o clube (aqueles que, sabia e sabe Moreira, lhe davam e continuariam a dar, também, a credibilidade que ele nunca teve). Aqui entra o FC Porto: o projecto mais apetecível para o empresário Rui. O comentador Rui Moreira, que abandonou o programa “Trio d’Ataque” em directo por, simplesmente, ter recebido uma opinião contraditória àquela que era a narrativa que este tentava fazer passar, foi subindo degraus e passou a ser “o cavaleiro-mor na defesa dos corruptos da direcção”, ao invés d’”o choninhas que comenta umas coisas sobre penáltis no canal público”. Estava dado o mote: Moreira haveria de ser, um dia, tudo aquilo que ambicionou. E o FC Porto há-de ser, daqui a uns anos, o último degrau. 

Rui Moreira no programa “Trio d’Ataque”.

Trocou o blazer de bombazina gasto à lá “tio liberal fixe da Foz” pelo fato completo à lá “tecnocrata dos gabinetes” e fez-se à vida. Empoleirado nos conhecimentos que fez enquanto presidente da ACP e nos amigos que tem no FC Porto, candidatou-se como independente à CMP com o apoio do CDS-PP e… venceu… três vezes. Ao CDS-PP juntaram-se outros projectistas do Porto como bem comercial, como a IL. O antigo mero comentador de um programa de comentário desportivo estava, agora, no lugar mais alto que ambicionou até então: era, agora, o Rei-mor do Porto. E restaurou o Porto à sua imagem, levando consigo os primeiros anos deste seu percurso.

No Porto dos portuenses, das tripas e das caralhadas, começou por arrumar aquilo que, na sua visão, estorvava o crescimento da cidade: empurrou para fora do Porto os portuenses, as tripas e as caralhadas. Empurrou os sem-abrigo para fora do centro da cidade: nada de Aliados ou Clérigos. Munido da sua experiência enquanto agente imobiliário, acabou com o Porto-cidade e criou o Porto-negócio. O Porto já não era Porto. Agora era “Porto.”, com ponto final e com mostrengos espalhados pela cidade que mostrassem o quanto o Porto estava a crescer e a mudar e onde turistas mais ou menos incautos tirassem fotografias. Uma espécie de cópia do “Amsterdam.” que Amesterdão popularizou. O Porto já não era uma cidade. Agora, o Porto era uma marca. Como a Era, a Remax ou a Century21. E tinha as portas abertas àqueles que, outrora, já tinham descoberto Lisboa: turistas estrangeiros endinheirados, especuladores imobiliários e nómadas digitais. E reconstruiu a cidade à volta destes três agentes económicos, como a santíssima trindade que haveria de restaurar a imagem do lugar. 

Os Aliados já não eram um espaço de passagem e reunião dos portugueses e dos portuenses, mas sim uma praça onde muitos turistas querem fotografar “o McDonald’s mais bonito da Europa”. A estátua de D. Pedro ainda está lá (embora as sucessivas obras para inglês ver a mantenham escondida há tanto tempo). O edifício da CMP também. Mas são só betão e aço a enfeitar, já não têm valor simbólico, apenas valor económico (a estátua de D. Pedro serve, fundamentalmente, para que os monarco-liberais batam no peito com muito vigor em eventos; o edifício da CMP serve, sobretudo, para acolher campanhas de propaganda que visem dar “nobreza” ao executivo que a preside). 

A cidade do Porto, outrora composta de velhas fachadas mas com a nobreza que só os portuenses lhe sabiam dar, ficou mais pomposa. As velhas fachadas agora são novas, os azulejos brilham e a calçada já não está tão gasta. Mas os portuenses já não a compõem. Agora, vêem-se e ouvem-se malas de arrasto que fervilham os ouvidos de quem passa pelo Porto. As casas já não são casas, são alojamentos locais. E os turistas já não são meros extra-terrestres curiosos, mas sim o público-alvo da governação camarária. A gentrificação começou com passos de felino e acabará com passos de gigante. À entrada do Porto deveria estar um placa onde se leria “vende-se”. 

Stencil de @filhobastardo

E durante estes anos, Rui Moreira foi governando a cidade com punho de ferro. Uma espécie de Margaret Thatcher no masculino. Os detractores eram afastados ou bloqueados nas redes sociais. Se esses detractores fizessem parte do tecido cultural da cidade, acabavam-se os subsídios e os apoios. Do caso Selminho aos insultos a jornalistas foi um passo e Moreira foi concentrando em si a imagem de toda uma cidade. Mais notório ainda, o Porto já não era dos portuenses, mas sim dos que, portuenses ou não, dessem palmadas nas costas do Rei-sol da Foz e dos endinheirados. Para lá da estratégia de vender a cidade a investidores de fora, foi-se limpando os que, dentro, tentavam minar a tal estratégia. Aqueles que fincavam e fincam o pé foram todos empurrados pelo penhasco abaixo. 

O STOP vai ser vendido à especulação imobiliária. É mais um espaço tradicional e cultural da cidade que se perde. Já se tinham pedido o mercado do Bolhão, agora transformado em feira de vaidades, onde turistas e influencers acorrem para mostrar, nas redes, o último espaço “trendy” onde estiveram; o cinema da Batalha, que durante anos a fio esteve ao abandono, até que o executivo viu nele uma forma de pôr a cidade a render, mais uma vez (e agora é um espaço onde burgueses e neo-burgueses assistem a filmes de “autor”); os Clérigos e a Livraria Lello, onde há uns anos se entrava livremente, sem esperas demoradas ou desesperos impacientes em filas compostas por norte-americanos, franceses ou alemães. Já a Casa da Música foi transformada numa ágora onde os meninos da Foz assistem às obras de cultura-gourmet em que o executivo de Rui Moreira transformou o espaço – é uma espécie de obra-prima: a cultura só para quem a puder pagar. Já o STOP, de onde saem e saíram inúmeros artistas portuenses que dão bom nome à cidade, vai fechar.

Vai fechar para uma restauração que devolva aos músicos e artistas a dignidade na criação? Não, vai fechar para dar lugar a um espaço de rentabilização económica, provavelmente um hotel ou vários alojamentos locais. E os artistas? Os artistas que se amanhem. Como se amanharam os vendedores do Bolhão que, com a sua restauração, ficaram sem dinheiro para pagar o valor da renda no espaço.

Por proposta do PSD e com os votos favoráveis do Aqui Há Porto e do Chega, a Assembleia Municipal do Porto pediu ao Governo que revertesse a suspensão de novos ALs na cidade. A moção contou com os votos contra do PS, CDU e BE, e a abstenção do PAN.
Fotografia: Agência Lusa

Desde que a extrema-direita, representada pelo Chega, regressou ao mainstream do panorama político português, que muito orgulhosamente se diz que “no Porto, não passam!”. Claro que não passam. Por que haveriam os portuenses de votar num populista ex-comentador desportivo da TV afecto ao SL Benfica, quando já votam num populista ex-comentador desportivo da TV afecto ao FC Porto? Rui Moreira até traz vantagens: em vez de vinho tinto de pacote da tasca do Tó em Algueirão-Mem Martins, bebe vinho do Porto dos Niepoort num palacete na Foz; em vez de chamar directamente “malandros” aos sem-abrigo, envia-os para partes periféricas da cidade. E, no fundo, ambos querem criminalizar a doença do vício das drogas duras, só que um diz que é para os prender e maltratar, o outro diz só que é para os prender com jeitinho. São a mesma farinha: só que uma vem num saco de plástico encorrilhado, a outra vem num saco de pano do mais fino têxtil. Em suma, Rui Moreira está para a direita reaccionária como o Porto está para o país: foi gentrificado. 

O Porto está morto. Porto. Morto. E os portuenses continuam vivos. Mas fora do Porto. E o Porto é capaz de ser, actualmente, o mais belo exemplo vivo da desgraça que é o neo-liberalismo e o capitalismo sem amarras, a tecnocracia parola dos gabinetes e a vassalagem aos senhores feudais. Que ninguém lhe siga o exemplo.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 42